A crítica à geração de energia eólica e solar no Nordeste brasileiro deixou de ser, em muitos casos, um debate técnico legítimo sobre licenciamento, convivência territorial e boas práticas empresariais. Passou a assumir contornos de indisposição generalizada contra a própria atividade, impulsionada por pessoas de boa-fé, mas também, de forma crescente, por oportunistas que se arvoram em defensores de comunidades humildes com objetivos eleitorais e até financeiros.
O caso de Serra do Mel é emblemático. Ali, ações judiciais de grande vulto pleiteiam a criação de fundos indenizatórios milionários, cuja gestão e distribuição ficariam sob responsabilidade de escritórios de advocacia que receberiam percentuais expressivos, tanto sobre eventual sucumbência quanto sobre os próprios recursos administrados. Tudo isso ocorre à revelia da vontade manifesta da ampla maioria dos colonos, que não se reconhecem como vítimas e veem na atividade eólica uma fonte legítima de renda, estabilidade e permanência no território.
Esse dado deveria, por si só, impor prudência ao discurso da “defesa dos vulneráveis”. Defender comunidades pressupõe ouvi-las, respeitar sua autonomia e reconhecer sua diversidade interna, não falar em seu nome contra sua vontade expressa.
Outro pilar recorrente dessa narrativa é a chamada “síndrome da turbina eólica”, frequentemente apresentada como fato científico consolidado. No entanto, essa caracterização carece de elementos robustos e consensuais na literatura internacional. Não há definição clínica padronizada, critérios diagnósticos universalmente aceitos ou biomarcadores específicos. Os sintomas usualmente associados, como insônia, ansiedade, cefaleias e irritabilidade, são inespecíficos, multifatoriais e altamente influenciáveis por contexto social, estresse, expectativas e percepção de risco.
Nesse ambiente, passou a circular com frequência a menção a um suposto “estudo da Fiocruz”, invocado como argumento de autoridade. O que de fato existe são pesquisas pontuais, vinculadas a unidades específicas da Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com universidades, com recortes territoriais restritos e amostragens limitadas, concentradas em poucas comunidades. Esses trabalhos têm valor acadêmico enquanto estudos exploratórios e qualitativos, mas não apresentam escala populacional nem abrangência territorial que permitam generalizar efeitos graves e automáticos para todos os empreendimentos eólicos e solares do Nordeste brasileiro. Tampouco representam uma posição institucional ampla da Fiocruz sobre o tema.
Há ainda outro vício recorrente no noticiário crítico. Muitas matérias colocam no mesmo plano situações completamente distintas: empreendimentos devidamente licenciados, com audiências públicas e condicionantes ambientais, e casos em que populações se aproximaram das estruturas após sua implantação, fenômeno comum em regiões que passam a gerar renda e oportunidades. Ignoram também a evolução tecnológica dos aerogeradores, dos padrões de afastamento e das exigências regulatórias ao longo dos últimos quinze anos.
Nada disso significa negar que existam maus agentes, contratos desequilibrados ou falhas de comunicação com comunidades. Eles existem e devem ser corrigidos com rigor. Mas generalizar exceções, criminalizar uma atividade estratégica e deslegitimar quem atua corretamente é um desserviço ao Nordeste e ao país.
Mais do que isso, lutar contra a expansão da energia eólica e solar no Nordeste pressupõe responsabilidades adicionais que raramente aparecem no debate. Exige estudos muito mais completos, representatividade social devidamente legitimada e seletividade para focar nos casos realmente graves. Exige também algo ainda mais fundamental: uma reflexão honesta sobre quais são as alternativas.
De onde virá a energia necessária para o desenvolvimento econômico, para a redução estrutural da tarifa elétrica, para a ampliação da distribuição e acesso à água, para a eletrificação e digitalização da economia, para a industrialização verde e para o conforto social que historicamente nos foi negado? Qual outra matriz oferece ao Nordeste escala, competitividade, rapidez de implantação e compatibilidade ambiental semelhantes?
Justiça socioambiental não se faz com slogans, nem com a instrumentalização do sofrimento alheio. Faz-se com rigor técnico, honestidade intelectual, escuta real das comunidades e compromisso com soluções concretas. Defender o Nordeste é corrigir erros, punir desvios e fortalecer boas práticas, não inviabilizar uma das poucas alavancas estruturais de seu desenvolvimento presente e futuro.
Jean-Paul Prates é ex-Secretário de Estado de Energia do RN, ex-Senador da República e presidente do Conselho de Mantenedores do CERNE.
Eólicas atrapalham a vida e adoecem moradores no NE
Energia Eólica no Nordeste, Saúde, Comunidades e Uso Indevido de Evidências Científicas
Objetivo do anexo
Este anexo tem por objetivo contextualizar tecnicamente as principais referências jornalísticas e acadêmicas utilizadas no debate público recente sobre supostos impactos negativos da geração de energia eólica no Nordeste brasileiro, esclarecendo limites metodológicos, alcances reais dos estudos citados e impropriedades frequentes de generalização.
2. Sobre a chamada “síndrome da turbina eólica”
A chamada “síndrome da turbina eólica” não é reconhecida como entidade clínica formal por organismos internacionais de saúde. Não há definição diagnóstica padronizada, nem critérios clínicos universalmente aceitos, tampouco biomarcadores específicos associados à exposição a aerogeradores.
Os sintomas usualmente citados, como insônia, ansiedade, cefaleia, irritabilidade e estresse, são inespecíficos e multifatoriais, podendo estar associados a múltiplos determinantes sociais, psicológicos, ambientais e econômicos. A literatura internacional indica forte influência de fatores de percepção de risco, expectativas negativas, conflitos territoriais e estresse social na manifestação desses sintomas.
3. O que existe, de fato, sobre “estudos da Fiocruz”
Há pesquisas vinculadas a unidades específicas da Fundação Oswaldo Cruz, em especial à Fiocruz Pernambuco, em parceria com universidades públicas. Os principais pontos técnicos são:
• tratam-se de estudos exploratórios e localizados, com recorte territorial restrito, concentrados em comunidades específicas do Agreste pernambucano;
• apresentam amostragens reduzidas, como no caso frequentemente citado de cerca de 100 entrevistados em uma única localidade;
• utilizam metodologias predominantemente qualiquantitativas, com forte componente de percepção subjetiva e entrevistas;
• não possuem desenho epidemiológico que permita inferir causalidade direta, nem extrapolação estatística para outros territórios, tecnologias ou contextos socioeconômicos.
É incorreto, portanto, afirmar que exista um “estudo da Fiocruz” com validade nacional que comprove efeitos generalizados e inevitáveis da energia eólica sobre a saúde humana. Tampouco há posicionamento institucional amplo da Fiocruz condenando a matriz eólica como atividade intrinsecamente nociva.
4. Limites das generalizações jornalísticas
A análise do noticiário revela recorrentes problemas de enquadramento:
1. Mistura de contextos distintos, incluindo empreendimentos licenciados regularmente e situações em que houve ocupação ou aproximação de moradias após a instalação das torres;
2. Ausência de diferenciação tecnológica, ignorando a evolução dos aerogeradores, padrões de ruído, afastamento mínimo e exigências ambientais ao longo dos últimos quinze anos;
3. Uso de estudos localizados como prova universal, sem explicitação de suas limitações metodológicas;
4. Amplificação seletiva em períodos politicamente sensíveis, com forte carga emocional e pouco rigor técnico.
5. Representatividade social e conflitos de interesse
Em alguns casos emblemáticos, como o de Serra do Mel, ações judiciais e campanhas públicas são conduzidas sem respaldo da maioria das comunidades supostamente representadas. Há registro de oposição expressa de grande parte dos moradores à judicialização ampla e à criação de fundos indenizatórios milionários, cuja gestão ficaria sob responsabilidade de terceiros, com remuneração percentual elevada.
Esse tipo de arranjo exige atenção redobrada do Poder Judiciário, do Ministério Público e da imprensa, para evitar a instrumentalização de comunidades vulneráveis por interesses eleitorais, políticos ou financeiros.
6. Referências jornalísticas e acadêmicas analisadas
Jornalismo e reportagens
• Mongabay Brasil, Comunidades rurais do Nordeste enfrentam desafios causados por parques eólicos (2023).
• Nexo Jornal, Danos à saúde mental de camponeses próximos a eólicas (2024).
• Thomson Reuters Foundation, Wind turbines in Brazil stir conflict with Indigenous rights (2023).
• Empresa Brasil de Comunicação, Pesquisa avalia impactos de parques eólicos na saúde de moradores (2023).
Produção acadêmica
• Revista Sustainability in Debate, UnB, “Necropolítica dos ventos: determinação social da saúde mental em comunidades camponesas” (2023).
• Revista Agrogeoambiental, IFSULDEMINAS, estudo sobre impactos socioambientais de parques eólicos no Agreste pernambucano (2022).
7. Conclusão técnica
Os materiais analisados indicam a necessidade de aprimoramento contínuo das práticas de licenciamento, relacionamento comunitário e monitoramento ambiental. Contudo, não sustentam, do ponto de vista científico ou estatístico, uma condenação generalizada da energia eólica e solar no Nordeste brasileiro.
Qualquer contestação ampla à expansão dessas fontes deve ser acompanhada de:
• estudos epidemiológicos de larga escala,
• representatividade social legitimada,
• seletividade para focar casos efetivamente graves,
• e, sobretudo, proposição clara de alternativas energéticas capazes de assegurar desenvolvimento econômico, redução tarifária, segurança hídrica, eletrificação, digitalização e industrialização verde da região.
Sem isso, a crítica corre o risco de se transformar em obstáculo ao próprio direito histórico do Nordeste ao desenvolvimento.